Saudade é uma palavra especial em nossa língua. Ela tem a capacidade de transmitir, ao mesmo tempo, profunda nostalgia, tristeza pelas partidas e a alegria e gratidão pelas memórias de tempos felizes.
Que nossos espíritos se unam em saudade pela partida de um bom homem.
O Professor Cançado Trindade é oriundo da minha cidade natal, Belo Horizonte, uma cidade de nome poético.
Foi educado em uma excelente escola católica e realizou seus estudos jurídicos na Universidade Federal de Minas Gerais, antes de se mudar para a Europa e fazer seu mestrado e doutorado na Universidade de Cambridge.
Tive uma trajetória semelhante e foi lá, em nossa alma mater no Brasil, que conheci pessoalmente o Professor Cançado Trindade pela primeira vez.
Naquela época, ele já era uma figura de destaque nos campos do direito internacional e dos direitos humanos, com toda a trajetória de seus julgamentos e transformações em âmbito interamericano que todos conhecemos.
Apesar de seus vários compromissos internacionais, ele visitava nossa universidade de tempos e tempos e dava especial atenção aos alunos. Essa foi uma dimensão constante de sua trajetória. O professor sempre foi particularmente gentil e atencioso com estudantes e jovens profissionais ao longo de toda sua vida.
Nossa Faculdade de Direito tem um centro acadêmico tradicional. Quando eu estava no fim de minha graduação em direito, o Centro Acadêmico pediu para que eu fizesse um discurso em homenagem ao professor Cançado Trindade. Era o centenário do Centro, e a liderança estudantil havia decidido oferecer ao professor Cançado Trindade uma Medalha de Honra nomeada em homenagem a José Carlos da Mata Machado, antigo líder do Centro Acadêmico que foi torturado e morto pela Ditadura Brasileira de 1964-1985 por razões políticas.
Isso foi alguns meses antes da tomada de posse do professor como Juiz da Corte Internacional de Justiça. Depois de eu proferir o discurso e finda a cerimônia, o professor veio até mim e me pediu que lhe enviasse o texto da minha fala.
Acima de tudo, ele se dirigiu a mim com respeito e me tratou como um igual, apesar do abismo de conhecimento, experiência e reconhecimento que há entre um mestre jurista de destaque único e um então estudante em seus primeiros anos de estudos jurídicos.
Aquele seria o começo de um diálogo que atravessou os anos, para meu imenso benefício. Nos anos seguintes, o professor visitou nossa cidade de Belo Horizonte com regularidade, durante as visitas ele me convidava para tomar café. Ele visitava a cidade religiosamente para estar próximo de seu pai, que era na época, creio, um nonagenário. Não fiquei em nada surpreso quando descobri que o humanista coerente era também um filho afetuoso.
Eu me referi à deferência do professor para com os estudantes antes; agora é um bom momento para destacar outra de suas virtudes, em nível pessoal: ele era um homem de família. Um homem de família com uma família adorável. Uma esposa gentil, inteligente e generosa; e filhos amáveis que carregam o espírito do pai em seus olhos.
Nesses ocasionais encontros, que ocorriam na maior parte das vezes em Belo Horizonte e, eventualmente, nos Países Baixos e em Washington, o professor dividia suas notícias comigo. Sendo quem ele era, eram quase sempre novidades empolgantes sobre grandes julgamentos, eventos, acontecimentos internacionais. Essa coexistência expandiu enormemente o horizonte de minha limitada percepção.
Eu sempre me referi a ele usando os termos “Professor” ou “Mestre”, e não “Juiz” ou “Excelência”, porque ele foi, acima de tudo, um educador. Valorizava a vida acadêmica e foi sempre um homem da universidade. Essa característica fez dele um consultor jurídico e juiz de especial acuidade fora dos muros da academia.
O professor tinha orgulho de suas conquistas, e tinha todo o direito de ter. Pouquíssimas pessoas são abençoadas com comparáveis inteligência, ética de trabalho e capacidade diligente de realizações. Mas, o professor não tinha um orgulho comum. Não, de forma alguma.
Como todos sabem, ele foi condecorado e homenageado por universidades, governos, sociedades jurídicas etc. em todo o mundo. Também recebeu homenagens, em diversos continentes, das vítimas de violações de direitos humanos, assim como de suas famílias e comunidades. Durante nossas conversas, ele nunca demonstrou mais orgulho do que quando falou das ocasiões em que seu trabalho tinha sido reconhecido e homenageado pelas vítimas. Esse orgulho por esforços humanitários é muito admirável.
Outro aspecto interessante de sua personalidade era seu bom senso de humor e sua extraordinária risada. Um exemplo disso é uma anedota que me veio imediatamente à mente, assim que escrevi a frase anterior; uma história que sinto que o faria rir se ele a lêsse.
Durante uma de nossas conversas, o professor me contou que, na Corte Internacional de Justiça, há certas afinidades linguísticas: alguns dos juízes falam inglês, outros falam francês. Ele era uma figura; disse-me, rindo muito, que intencionalmente trocava sua língua de inglês para francês, e vice-versa, apenas para brincar com seus colegas.
O professor certamente tinha uma mente interessante.
Seu bom senso de humor era de todo consistente com seus escritos e pensamento. O professor conheceu profundamente o melhor e o pior da humanidade. Em seu trabalho, lidou com diversas atrocidades: tortura, massacres... No entanto, manteve sua fé nos valores humanísticos e na possibilidade de progresso humano. Ter um bom senso de humor combina com ter fé na humanidade.
A brincadeira divertida dele, de intencionalmente variar entre o inglês e o francês na conversa com os colegas do tribunal de Haia, era também, claro, uma manifestação inteligente de sua independência e autonomia. O professor foi um pensador e jurista independente que prestou o devido reconhecimento às lições das grandes mentes do passado.
Em 1944, perguntaram a Albert Einstein se a Filosofia deveria fazer parte da educação de um físico. Ele respondeu:
"Sim. Conhecer o contexto histórico e filosófico da ciência nos dá autonomia diante dos preconceitos que a maioria dos cientistas carrega.”
E essa autonomia, escreveu Einstein, “é o que marca a diferença entre o mero artesão ou especialista e aquele que efetivamente busca a verdade”.
O Professor Cançado Trindade era um exemplo vivo de como uma lógica similar se aplica ao Direito.
Pode-se compreender melhor o flagelo da guerra e do genocídio ao se incluir, na análise, v.g., as descrições da crueldade humana presentes na Ilíada de Homero; pode-se compreender melhor a grave ilegalidade dos massacres em massa ao se incluir, na análise, o relato sistemático da obra “Os afogados e os sobreviventes”, de Primo Levi; pode-se compreender melhor a questão nuclear ao se incluir, na análise, v.g., as histórias de sobreviventes contidas na obra “Hiroshima”, de John Hersey.
Esses são apenas alguns exemplos reveladores dos trabalhos e votos de Cançado Trindade. Seus escritos continuarão a representar, nos anos que estão por vir, exemplos grandiosos do quão benéficas a Filosofia, a Literatura e as Humanidades podem ser para quem deseja conhecer o Direito em suas profundidades.
Os juristas internacionais compõem o grupo de profissionais que são chamados para lidar com sofrimentos, conflitos e desajeitos humanos. Há certos insights sobre as múltiplas camadas da condição humana que apenas podem ser encontrados no diálogo com as Humanidades.
Muitos estudantes de direito em diferentes partes do mundo começam seu caminho lendo “O Caso dos Exploradores de Cavernas”, de Lon Fuller, uma história de tragédia e julgamento em que cada juiz é a encarnação de uma escola de pensamento jurídico. Assim, há um juiz que encarna o positivismo; um juiz realista; um juiz que encarna a escola do Direito Natural; e assim por diante.
O Professor Cançado Trindade foi um autodeclarado discípulo – e mestre – do Jusnaturalismo. Acreditava que o Direito não era um fim em si mesmo; que o Direito, nacional ou internacional, deve ser meio para um fim humano: resolver pacificamente as controvérsias, zelar pela dignidade humana da melhor maneira possível. Paz, dignidade. Nesse aspecto, o professor Cançado Trindade representa uma minoria na atual profissão jurídica, e uma maioria entre os fundadores do Direito Internacional.
Um dos insights fundamentais do “Caso dos Exploradores de Cavernas” de Fuller é que o Direito não está sujeito a um único modo de interpretação; diferentes escolas de pensamento jurídico podem produzir diferentes resultados judiciais. Se existem diferentes modos de interpretar e aplicar o Direito para solucionar controvérsias, qual é o melhor? Para Cançado Trindade, a resposta a esta pergunta era simples: o melhor caminho é o caminho mais humano, ou seja, aquele que está mais próximo dos fins humanísticos da paz e da dignidade aos quais o Direito fundamentalmente serve.
Ronald Dworkin imaginou um juiz ideal, Hércules, cujas opiniões hipotéticas referenciavam fontes e materiais jurídicas formais ao interpretá-las de forma moralmente atraente, por meio de uma combinação entre regras e princípios sob a premissa básica de que o sistema jurídico está comprometido com uma norma fundamental de Justiça. Lembro-me de ler pela primeira vez sobre o juiz ideal de Dworkin e imediatamente pensar em Cançado Trindade como o juiz Hércules da vida real. O que era uma aspiração no Norte, virou uma realidade concreta pelos trabalhos de um homem do Sul Global.
No confronto entre as diferentes escolas de pensamento jurídico, um argumento comum contra os jusnaturalistas é que sua linha de pensamento sacrifica a segurança jurídica e a previsibilidade em nome de visões particulares de justiça. O professor Cançado Trindade trabalhou como juiz internacional durante décadas. Seus votos são extremamente consistentes entre si, bem como em relação a seus escritos e ensinamentos acadêmicos. Refletiram tanto uma profusão de fontes jurídicas formais quanto um apelo às visões objetivas e intersubjetivas de justiça provenientes da tradição dos direitos humanos. Votos humanistas consistentes. Não é fácil encontrar nível semelhante de segurança jurídica e previsibilidade na adjudicação internacional ou nacional.
Em uma de suas palestras, Ronald Dworkin imaginou seu mentor, o juiz Learned Hand, no céu. Feliz, bem-humorado, bem-disposto, Hand compartilhava suas inteligentes ideias e histórias felizes com seus amigos celestiais. Posso imaginar o professor Cançado Trindade no céu. Livre de doenças e das limitações terrenas, ele sorri mais uma vez aquele seu grande sorriso. Ele sorri enquanto Bartolomé de Las Casas o acolhe como um irmão.
Aqui na Terra, sentimos saudade dele. Em seu tempo conosco, o professor corajosamente defendeu a primazia do direito sobre a força e a centralidade da pessoa humana nas questões jurídicas e políticas. E o fez de forma intransigente. Em tempos de guerra, fome, impunidade e riscos cada vez maiores de catástrofe nuclear e ambiental, sua defesa eloquente da paz e da dignidade humana nunca foi mais necessária.
Uma das ideias centrais do pensamento de Cançado Trindade era a de que, para além das fontes jurídicas formais, havia uma fonte material, uma fonte jurídica última: a consciência humana. De um modo muito especial, Cançado Trindade foi a consciência humana do Direito Internacional Público. O amável humanizador do Direito. Todos devemos ser muito gratos por isso.
* Escrito por Henrique Napoleão Alves. Inicialmente publicado em inglês no Völkerrechtsblog sob o título "In Remembrance of Professor Cançado Trindade". Republicado hoje, 29 de maio de 2024, em razão dos dois anos do falecimento do professor Antônio Augusto Cançado Trindade.
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